Um milhão de pessoas deslocaram-se a Roma para assistir à Beatificação do Papa João Paulo II. Uma amiga minha perguntava com mordaz ironia, porque não fui a Roma. Segundo ela, toda a gente foi para Roma, "essa cambada de beatos!".
Riu-me. Levo a provocação com a indiferença de um árbitro insultado num estádio de futebol. E questiono-me sobre a veracidade das acusações. Será uma beatice seguir João Paulo II? Sair de casa para ir ao encontro de um velho, em estado cadavérico, fechado numa caixa de madeira?
Riu-me novamente. Entendo a crítica, que se justifica apenas quando vinda de quem não consegue ver mais além do que é aparente, do que está diante dos olhos. É um problema de vista.
Há muito que lido com a diferença: como católico, sou olhado como um tipo esquisito, como uma raça à parte da humanidade. É um preconceito habitual. Mas o capricho não se ficam por aqui. Os autores desta magnífica teoria, também estratificam a categoria: há tipos normais (dentro do possível), e há beatos. Enfim, perdem-se na teoria, esquecem o essencial: somos todos homens, todos iguais, feitos da mesma matéria: somos todos pecadores defeituosos. E quem acusa parece por vezes esquecer isso. Porque fazendo do católico o membro de uma seita mafiosa ou de opiáceos, ignora a maior evidencia: é que o beato padece dos vícios dos homens, e que por isso também é preguiçoso.
O que ninguém vê, o que era bom que vissem, o que está diante dos olhos, é que milhões de pessoas saíram de casa, passaram a noite em claro, sob a ameaça de chuva, ajoelhadas a rezar. Foi Noite Branca em Roma.
Porque o fazem? Cada um terá sido tocado à sua maneira, de forma a sentirem o impulso de sair de casa para testemunharem aquilo que viram. Porque o que viram não foi ilusão, antes lhes falou directamente ao coração, porque era algo demasiado humano e razoável para não ser verdadeiro: o testemunho de João Paulo II.
Hoje, uma jornalista perguntava como era possível tanta simpatia por um Papa que ela achava ter tido tantas atitudes contraditórias (segundo ela, isto devia-se ao facto de ele ser conservador e popular).
Lembrei-me das palavras de Giussani, quando o questionavam sobre o porquê de tantas pessoas se reunirem para o ouvir. Giussani respondeu de imediato: "porque acredito naquilo de digo". O jornalista ficou atónito a olhar para ele. E ele encolheu os ombros ironicamente. O Jornalista ainda perguntou se isso bastava. Giussani disse que sim, e riu.
«E qual é esta causa? É a mesma que João Paulo II enunciou na sua primeira Missa solene, na Praça de São Pedro, com estas palavras memoráveis: «Não tenhais medo! Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo!». Aquilo que o Papa recém-eleito pedia a todos, começou, ele mesmo, a fazê-lo: abriu a Cristo a sociedade, a cultura, os sistemas políticos e económicos, invertendo, com a força de um gigante – força que lhe vinha de Deus –, uma tendência que parecia irreversível. Com o seu testemunho de fé, de amor e de coragem apostólica, acompanhado por uma grande sensibilidade humana, este filho exemplar da Nação Polaca ajudou os cristãos de todo o mundo a não ter medo de se dizerem cristãos, de pertencerem à Igreja, de falarem do Evangelho».
Amar João Paulo II não é uma formalidade, uma simpatia, um acto de beatice, mas um reconhecer de uma presença que se impôs, que ainda hoje se impõe, que falou ao mundo, e lhe mostrou um caminho que muitos ignoravam porque lhes abriu os horizontes, arrastando consigo multidões. Ainda hoje arrasta. Multidões que se movem pela força daquilo que encontraram, pela atractividade e comoção que aquela força de gigante lhes causou. E este é o testemunho de quem foi João Paulo II, da importância que teve para cada um de nós. Como Dostoyevski escrevia: «eu vi a verdade, não a inventei eu, e a sua imagem viva encheu a minha alma para sempre». Curiosamente, dois mil anos depois, este continua a ser o método da Igreja: um método que não viola a natureza das coisas, porque como ensina Wojtyla, «o homem é o caminho da Igreja, e Cristo é o caminho do homem».
Pensando em João Paulo II, lembro
a crítica de João Pereira Coutinho sobre "O Discurso do Rei". Guardo na memória a sua última imagem, cansado, doente, na janela do hospital, abençoando o povo quando as forças físicas definhavam, e constato para mim que a vida de João Paulo II é um testemunho «sobre a mais rara das virtudes: a virtude da resiliência. Esse sentimento moral profundo de que existem deveres que não apenas são superiores a nós como exigem o melhor de nós». Esse seu sentimento nasceu de um encontro; o encontro com Cristo. Cristo vivo. Presente. Aqui e agora. Um encontro tão grande, que lhe
encheu a alma, e o levou a anunciá-lo por todo o mundo.
Quem não vê isto não vê para além do que está diante dos olhos, ou seja, passados dois mil anos, a doutrina de Tomé continua a vencer, apesar da derrota que Jesus lhe infligiu. Mas, como está escrito, são «Felizes os que acreditam sem terem visto» (Jo 20, 29).
Obrigado Beato João Paulo II.