Nuno Álvares, logo nomeado condestável, era de outra matriz humana. Impetuoso, ardente, místico, Nuno Álvares é o cavaleiro medieval. Desde novo, deixa-se absorver pelas histórias de Galaaz e da Távola Redonda, e sonhava para si demandas do Santo Sepulcro e do Santo Graal. Embrenhava-se nas artes militares; considerava o rei e a coroa como entidades sacrossantas; mas entendia que aquele e esta deviam estar ao serviço da numerosa hoste que era o povo. Personificava a ousadia e o destemor; e aos vinte e dois anos, julgando ferida a sua dignidade de oficial português, afrontou João de Castela, desconsiderando-o em público, com serenidade e aparato. Ficava atónito perante as tergiversações do Mestre; mas não desanimava; e transmitia ao seu ídolo a coragem de altas empresas. Para o Condestável antepunha-se a tudo o interesse do povo português, de cujos instintos profundos se sentia irmanado; e defendê-lo de Castela constituía a sua missão suprema. Como guerreiro, era chefe; e os demais, mesmo os velhos e experientes, aceitavam-no naturalmente nessa qualidade. Dos que o acompanhavam, se eram maus, fazia-os bons; e, se eram bons, fazia-os melhores. Sempre se houve com heroísmo e honra: no campo da luta, como capitão; em negociações políticas, como plenipotenciário; em expedições de África, como soldado de um reino em ascensão. Era afável de palavras, e acolhia comedidamente quantos da sua hoste dele se abeirassem, tanto capitães como homens de armas; mas no arraial, em curso de batalha, impunha-se e era temido como Senhor; e tornava-se bravo se alguém desobedecia ao regimento que lhe fora dado. Haviam-lhe medo os pequenos, e receio de o anojar os fidalgos e cavaleiros; mas depois da luta, por encobertos modos e graciosos gestos, procurava maneira de emendar os rigores de que tivesse usado. Não tinha cobiça, e das presas de guerra nenhuma guardava para si; e regia com muita justiça o que lhe estava confiado, resolvendo por «direita balança» os pleitos que lhe eram submetidos. Fazia esmolas e praticava caridade, especialmente em favor de envergonhados, viúvas e órfãos; e, quando morreu a condessa sua mulher, não voltou a casar-se e entrou em mística religiosa. Depois de assinadas as pazes com Castela, professou; e foi Frei Nuno de Santa Maria. Cumprira a sua missão: perdoou as dívidas, distribuiu as riquezas, repartiu o património de terras e vilas. Aniquilou-se. Vestiu o seu hábito, que considerava a sua mortalha. Recebeu uni dia a visita do embaixador de Castela, e na sua cela acolheu o enviado. Perguntou-lhe o embaixador: «Não despireis jamais essa mortalha?». Respondeu Frei Nuno: «Sim, se el-rei de Castela outra vez mover guerra contra Portugal». O embaixador, assombrado e de cabeça pendida, saiu da cela. Perante a alusão aos perigos do reino, ressuscitava o capitão indomável; e quando soube, já adiantado em anos, que praças portuguesas de África estavam em algum risco, do seu convento do Carmo atirou ao Rossio uma lança, exclamando: «Em África a poderei cravar, se preciso for». No cabo da sua existência, pouco saía. Envolto na estamenha em farrapos, com uma gorra desbotada a cobrir-lhe a cabeça, inclinado para a frente, apoiado a um bordão, passos arrastados, rosário nas mãos, ia por ruas e vielas e bairros escusos fazendo esmolas e amparando aflitos e ansiosos. Em l de Novembro de 1431 - quarenta e seis anos após Aljubarrota — morreu Frei Nuno. Foi profunda a emoção do reino, e sofreu-a fortemente João I. Este tinha a certeza íntima de que devia a Nuno Alvares o trono; e o povo, no seu instinto colectivo, sentia que desaparecera o arauto da honra, do interesse e da independência da nação. Foram-lhe feitas exéquias régias. João I assistiu: mandou dispor a seu lado uma cadeira vazia: a sua consciência nacional, amadurecida pelo governo, dizia-lhe que o Condestável fora um dos raros portugueses sem os quais o reino não seria o que era.
Albeto Franco Nogueira, As Crises e os Homens, Ática, Lisboa, 1971, Págs. 82-85
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