«A maneira de para a guerra é pará-la. A maneira de deixar a bebida é deixá-la. A maneira como a China acabou com o uso generalizado do ópio foi proibindo o cultivo e importação do ópio. Os filósofos, sacerdotes e médicos da China bem podiam cansar-se de pregar contra o ópio durante milhares de anos, que o uso do ópio, enquanto fosse acessível e fácil de obter, continuaria desenfreadamente. Somos feitos assim e nada mais»(Pág.263)
O que me atrai em Jack London é a sua capacidade de ser um herói realista. Os seus livros tendem sempre a relatar a realidade e nunca o impossível. Contando-nos a história de um herói realista, permite-nos sonhar com um herói real.
Nas memórias de um alcoólico, London relata-nos na primeira pessoa a sua relação com o alcoól, ou se preferirem, com John Barleycorn, como é tratado em toda a obra.
Jack e John são velhos amigos: London inicia o seu contacto com o álcool aos 5 anos de idade, e nunca mais o largaria. E conta-nos o autor que logo aí o detestou, mas com o passar dos anos, se foi sempre vendo em situação de necessidade e próximidade com o mesmo, pois teimosamente "a vida andava sempre de mãos dadas com a bebida"(pág.80). Simultâneamente, Jack vai descrevendo como era o país que conheceu, principalmente pelo mar, e como viviam as várias classes, pelas quais foi, como o passar do tempo e com o seu êxito crescente, passando e convivendo.
Barleycorn é descrito como aquele que "inibe a moralidade"(pág.78), e ao mesmo tempo "diz sempre a verdade"(pág.13). O livro é esta critica e elogio constante a esse velho companheiro dos homens, homens esses que nasceram "não só sem o desejo do álcool, como tem verdadeira repugnância por ele"(pág.14).
O retrato é mais que real: para os mais novos, a bebedeira surge como "ínsignia suprema da virilidade"(pág.75). Recorda Jack London que "todos os caminhos iam dar ao Saloon. Os milhares de caminhos de romance e aventura confluíam para o saloon, e daí para o mundo"(pág.13). E que mais queria um jovem? Queria apenas "ser um homem entre homens"(pág.84). E esta tendência é facilitada pela sociedade que permite que os jovens se aproximem dele. Diz London que "olhando para trás, vi como a acessibilidade do álcool me fez gostar dele"(pág.14).
Barleycorn concede a irracionalidade, levando os homens a assumirem "plena e facilmente quando se está ébrio", "uma conduta condenável e impossível de seguir por alguém sóbrio"(pág.78), sendo esse "um serviço através do qual ele aumenta o seu poder sobre os homens"´(pág.103); mas Barleycorn também une, pois "qualquer individuo sombrio e mal humorado, disposto a tornar-se um inimigo, transformava-se em bom amigo"(pág.76); e também concede imaginação e coragem.
As companhias são importantes. A propósito de uma viagem em que não se abraçara a Barleycorn, escrevendo que "mais ninguém bebia a bordo. O ambiente propício à bebida não estava presente"(pág.266). O mesmo se comprova quando relembra a sua amizade de juventude com os estivadores do porto de Oakland e afirma que por ser o anfitrião, "só podia oferecer a hospitalidade nos termos em que a compreendiam"(pág.83).
Assim, o álcool surge também como uma imposição social. "Bebia por uma questão de sociabilidade e, quando estava sozinho, não bebia"(pág.206). As pessoas não bebem porque o corpo lhes pediu, mas porque socialmente assim é permitido, ou até exigido: porque a alta sociedade bebe para fazer sala, porque os estivadores bebem porque têm sede de aventura, porque os negociantes bebem para fazer negócios.
E o pior, vaticina London, é o carácter infinitamente negativo que o álcool acarreta consigo: o vício. "Era a velha questão. Quanto mais eu bebia, mais tinha de beber para me fazer efeito"(pág.235). É uma questão de habituação. Um hábito que leva à dipsomania. "É que o bebedor perito não bebe para se embebedar. Antes fá-lo para se sentir bem, para se pôr numa disposição agradável, e nada mais. As coisas que mais cuidadosamente evita são a náusea, a ressaca, a impotência e a falta de orgulho de quem bebe em excesso"(pág.229). Mas este caminho é perigoso. É passear na boca do lobo, porque leva os homens a acreditarem "que estão a dominar o jogo".
London inicia o livro prevendo o fim: a morte de John Barleycorn ás mãos das mulheres, pois "são elas que pagam - as esposas, irmãs e mães"(pág.14)- o preço da acessibilidade dos álcool, pois que elas partilham as vidas deles.
E assim acaba por tacitamente confirmar que a mulher é o elemento civilizador do homem. Elas "são quem verdadeiramente preserva a raça. Os homem são esbanjadores, os amantes da aventura e os jogadores; e no fim, é pelas mulheres que são salvos"(pág.264). Como ele.
«Os devotos de John Barleycorn são assim. Quando lhes bate à porta a boa sorte, bebem. Quando não têm sorte, bebem, mas na esperança de boa sorte. Se a sorte é madrasta, bebem para esquecer. Se encontra um amigo, bebem. Se discutem com um amigo e perdem essa amizade, bebem. Se os seus assuntos amorosos são coroados de sucesso, ficam tão felizes que é obrigatório beberem. Se forem abandonados, bebem pela razão contrária. E se não têm nada para fazer, pois bem, tomam uma bebida, seguros de que, quando tiverem tomado um número suficiente de bebidas, as lavas começarão a rastejar nos seus cérebros e não terão mãos a medir com coisas para fazer. Quando estão sóbrios, querem beber, e, quando bebem, querem beber mais.»(Pág.87)
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