A Culpa em 3D
ATENÇÃO: "Avatar", que levou três estatuetas no Oscar, provoca doenças. Li algures. Uma pessoa está várias horas na sala, com óculos 3D, acompanhando com entusiasmo as aventuras da raça humana em planeta azul e distante. E, quando a festa acaba, desce uma tristeza sem nome sobre a nossa alma. O confronto com a banal realidade pode ser, dizem, traumático.
Comigo, foi precisamente o contrário: deprimi durante o filme. Quando o filme terminou e eu mergulhei nessa "banal realidade", senti a alma a renascer. Será possível? Os médicos não têm
resposta para a minha estranha condição. Eu talvez tenha uma: "Avatar" pode ser um prodígio tecnológico do século 21. Pena repetir os piores clichês narrativos e políticos do século 20.
Mas vamos à história, caso a desconheçam. "Avatar" é um filme de ficção científica sobre a relação entre a raça humana e o povo Na'vi, habitante do dito planeta. Nesse planeta, de nome Pandora, existem recursos naturais valiosíssimos que os humanos cobiçam. Os Na'vi não abrem mão dos ditos recursos.
Os humanos respondem ao desafio de forma dupla: militarmente, preparam ofensiva bélica contra os Na'vi, esperando ocupar o planeta e roubar o que podem; cientificamente, a via é outra: entrar em contato com os nativos através de clones deles. Esses clones, que dão nome ao filme ("avatares"), são controlados mentalmente pelos próprios humanos. Como se fossem marionetes de controle remoto.
Fatalmente, a ganância militar vence a pureza imaculada da ciência. Os Na'vi são atacados; o
planeta Pandora parcialmente destruído; mas, redenção final, um dos cientistas, que começa como militar empedernido e traiçoeiro, termina como o Gandhi local, liderando a revolta e disposto a trocar de lado para defender os Na'vi da predação humana. Não nego que "Avatar" fascina os incréus com a utilização engenhosa do 3D. Mas a questão passa por saber se o 3D resiste à vulgaridade previsível da história. Não creio. Dez minutos bastam para experimentar a novidade visual de James Cameron. Ao décimo primeiro minuto, retiramos os óculos (com incômodo), bocejamos (com estridência) e sentimos que a novidade está vista e revista. Venha a história, por favor.
A história não vem. Vêm retalhos de histórias mil vezes contadas em que a denúncia é conhecida: nós, humanos, imperialistas e belicistas, não respeitamos a pureza das culturas locais. Exploramos elas para nosso ilegítimo ganho, esmagando a riqueza profunda, e profundamente espiritual, de povos que consideramos "primitivos" ou "inferiores".
Felizmente para esses povos, existe sempre um exemplar da espécie humana que, em ato de contrição, se converte ao nativismo, repudiando os valores "ocidentais" e combatendo-os em nome da causa tida por "inimiga". "Avatar" é isso: uma mistura de "Pocahontas", "Dança com Lobos" e "O Último Samurai", servido em formato 3D. E, sendo isso, não se distingue do primarismo que habita esse tipo de filme: o primarismo de olhar para culturas distintas como intrinsecamente superiores à cultura branca, ocidental e, de preferência, judaico-cristã.
"Avatar" é um filme sobre a culpa; o sentimento de culpa que assola as consciências progressistas; sobre "o fardo do homem branco" que ele, coitado, carrega há gerações para expiação dos seus pecados "imperialistas". E dos pecados dos seus pais, de seus avós, e bisavós, e trisavós... O que está ausente dessa visão é a ideia simplória de que a cultura branca, ocidental e judaico-cristã, apesar dos seus erros históricos (que os houve), também foi capaz de produzir uma civilização que garante ainda um espaço de liberdade, humanidade e decência que, muitas vezes, está ausente dessas culturas "intocadas". Culturas onde a arbitrariedade do poder tribal; a violência física sobre os mais fracos; o animismo pré-científico; e até a mera bruxaria terapêutica não deveriam inspirar respeito. Só repulsa.Regresso ao início. "Avatar" provoca doenças? Dizem que sim. Um mundo azul de comunhões espirituais perfeitas pode alimentar sério desânimo para quem não gosta de se confrontar com o mundo imperfeito onde vivemos. No meu caso, a doença só se dissipou quando abandonei o sermão de James Cameron e o seu belo planeta de tédio. Dissipou-se, enfim, quando regressei à "banal realidade" das nossas vidas igualmente banais. A cidade. As sirenes, o trânsito, os rostos que passam. A chuva. A banca dos jornais. Os cafés. Os amigos que se encontram. A noite que cai.»
Subscrevo tudo o que diz o João. Se me permitem, associo-me a ele. Sinto-me abraçado fraternalmente ao lê-lo. Mais: até sinto as suas palmadinhas nas costas. Simplesmente esquecia a Pocahontas e a Dança com Lobos e os demais, e em vez disso compararia a pelicula apenas a um fenómeno nacional: a Floribela. Porque ainda mais absurdo que a clara crítica ao mundo ocidental, o filme traz subjacente a ridícula mensagem ecologista de que o mundo é salvo pelas árvores e animais com os quais falamos e caminhamos por entre as amarguras da vida em pé de igualdade. Perdão, é pior: em clara desigualdade negativa. Isso, mais fadinhas.
No entanto, as lágrimas que agora me escorrem pela cara por me ver tão compreendido por alguém que diz o que eu por manifesto defeito nunca arranjei talento para dizer não me devolvem as horas que perdi naquela sala de cinema.
Valeu pela companhia.
Enfim...