Lavagante, Edições Nelson de Matos, Lisboa, 2008
O livro da semana lê-se numa tarde. Num piscar de olhos chega-se à última página. Pois como João Pereira Coutinho um dia escreveu sobre Lobo Antunes, há quem escreva como o Fred Astair dançava. É o caso de Cardoso Pires.
Assim como o um critico exclamou que Emanuel Nunes sabia começar uma ópera; o supra citado João Pereira Coutinho escreveu que o José Cardoso Pires sabia começar uma obra. Quando? Ora, quando invocava no Expresso o início do livro: «Bebemos mais um copo: o oitavo ou o décimo, não sei bem». É Genial!
O livro relata a história de um amor proibido de Daniel, um sujeito que acaba de deixar o Aljube, onde «aprendera a guardar uma distância quando se observa em certas ocasiões, como é próprio dos indivíduos habituados a viver sós. Então tratava-se por rapaz e punha nisso a tal distância, o humor e a ternura de quem se dirige a um estranho que se pretende corrigir. "Rapaz", repetiu vezes sem conta na sua cela do Aljube. "Calma, rapaz."» (págs.50-51). A obra é uma conversa entre Daniel e o Narrador, onde a «sombra de Cecília paira sobre mim e o Meu Amigo, dois conversadores nocturnos sentados sob o alpendre duma casa de praia. É por enquanto uma sombra, um contorno de mulher, seu quiserem. Esse contorno compõe-se de instantes de memória, deslocados no tempo e na distância, tal como sucede com os farolins das embarcações de pesca que andam ao largo» (pág.37). Quem é Cecília? Esse amor que sendo proibido, é correspondido; é «um punhado de instantes luminosos, dispersos no tempo e arrastados pela voz de um companheiro que a evoca» (pág.38). E a descrição física é de ir às lágrimas (veja-se as páginas 27 e 28).
A metáfora do Lavagante é muito bem conseguida: quem espera sempre alcança, poderia exclamar o leitor. É que de facto, tal como o Lavagante faz ao Safio, esse marido amorfo e cornudo que na obra é continuamente aviltado, vai lentamente deixando a traição da mulher consumar-se, para, num gesto frio e vingantivo, por fim a um amor que era legalmente impossível. Atirando para a cadeia o amante da mulher que «hora a hora, minuto a minuto, foi compreendendo que alguma força lá fora o mantinha afastado do mundo, no isolamento a que estava reduzido, e que essa força poderia ser a mesma que tinha libertado Cecília ao fim de poucas horas» (pág.82), o Engenhiro, acabaria não só por se identificar com o lavagante, mas também por inverter o seu paradigma, e porque numa «questão táctica [...] para ganhar uma presa é necessário às vezes soltar a outra» (pág. 83), o Safio, neste caso Daniel, será libertado pela mão invisivel do mesmo Engenheiro, sob uma implícita e tácita condição de Cecília, a outra presa, se manter fiel. Concluirá Daniel: «Todos os bichos sabem isso, e o lavagante também. Se sabe!» (pág. 83).
Politicamente o livro está encharcado. Mas que esperávamos? É Cardoso Pires!
O amante traído, esse famoso Sapo, um «fascista daqueles», surge como um engenheiro e acaba como um PIDE que continuamente é chamado de mau homem (p.e. safado pág.45). Há também as referências à censura, como o discurso inicial do jornalista bêbado de 39 anos («Viciámo-nos. Agora temos a Censura a escrever por nós. E amanhã? Quem sabe escrever amanhã, quando a Censura acabar?[...] A minha mão medrosa está viciada, amigos, escreve com medo...» cfr. pág.13), esse msmo discurso que levará o narrador a interrogar-se se poderia «reduzir um homem a um grito?,[...] ouvindo os lamentos do jornalista nosso companheiro» (pág.21). Esse mesmo Jornalista que insultará continuamente (Cabra, grandecissima cabra...18) Cecília, a femme fatale da história.
Mas, como desde já se vê, literáriamente Cardoso Pires é um maestro. Atente-se as descrições citadas. E leiam-se as passagens: «Diante de nós passam os autocarros vazios, de regresso a Lisboa, e veraneantes a caminho das esplanadas e do cinema da vila. E sobre esta feira sem música, esta procissão de vozes no escuro, um nome se levanta pela primeira vez entres dois amigos em confidências: Cecília» (pág.26); «Doutra maneira seria o strip-tease que conduz ao amor confessional e o amor confessional é a coisa mais complicada que Deus ao mundo deitou» (pág.50); e «Recapitulando, no dicionário de Daniel, Mulher Que Se Olha Ao Espelho é toda aquela que está permanentemente diante de si mesma; o pavor do ridículo caracteristico desta espécie origina, por via de regra, uma incapacidade de se entregar cujas consequências são por vezes dolorosas. A Mulher Que Se Olha Ao Espelho preza-se demasiado (ama-se, é o termo) para conseguir deixar de se estudar nas circunstâncias mais adversas e procura compensar as suas quebras de autoridade com uma critica impiedosa das situações absurdas» (págs.51-52). Ou mesmo a brilhante «E durante cinquenta e dois dias repetiu dolorosamente esse nome: Sapo, o Sapo. Como um relógio a marcar o tempo, como o sangue batendo nas veias» (pág.83). E poderia citar muitas mais (veja-se a Chegada da Primavera nas páginas 63-64).
Não diria que o livro é uma história de amor; antes, conta uma história de amor. Mas o que paira em toda a obra é a imagem dessa Cecília. É ela que está presente em todos os capítulos. É ela o motivo de toda a acção. É ela que começa como uma sombra e acaba como uma imagem concreta. Dúvidas? Leia-se o que o narrador afirma no fim do livro: «AGORA, SIM, vejo Cecília, fria e soberana»(pág.85).
O livro da semana lê-se numa tarde. Num piscar de olhos chega-se à última página. Pois como João Pereira Coutinho um dia escreveu sobre Lobo Antunes, há quem escreva como o Fred Astair dançava. É o caso de Cardoso Pires.
Assim como o um critico exclamou que Emanuel Nunes sabia começar uma ópera; o supra citado João Pereira Coutinho escreveu que o José Cardoso Pires sabia começar uma obra. Quando? Ora, quando invocava no Expresso o início do livro: «Bebemos mais um copo: o oitavo ou o décimo, não sei bem». É Genial!
O livro relata a história de um amor proibido de Daniel, um sujeito que acaba de deixar o Aljube, onde «aprendera a guardar uma distância quando se observa em certas ocasiões, como é próprio dos indivíduos habituados a viver sós. Então tratava-se por rapaz e punha nisso a tal distância, o humor e a ternura de quem se dirige a um estranho que se pretende corrigir. "Rapaz", repetiu vezes sem conta na sua cela do Aljube. "Calma, rapaz."» (págs.50-51). A obra é uma conversa entre Daniel e o Narrador, onde a «sombra de Cecília paira sobre mim e o Meu Amigo, dois conversadores nocturnos sentados sob o alpendre duma casa de praia. É por enquanto uma sombra, um contorno de mulher, seu quiserem. Esse contorno compõe-se de instantes de memória, deslocados no tempo e na distância, tal como sucede com os farolins das embarcações de pesca que andam ao largo» (pág.37). Quem é Cecília? Esse amor que sendo proibido, é correspondido; é «um punhado de instantes luminosos, dispersos no tempo e arrastados pela voz de um companheiro que a evoca» (pág.38). E a descrição física é de ir às lágrimas (veja-se as páginas 27 e 28).
A metáfora do Lavagante é muito bem conseguida: quem espera sempre alcança, poderia exclamar o leitor. É que de facto, tal como o Lavagante faz ao Safio, esse marido amorfo e cornudo que na obra é continuamente aviltado, vai lentamente deixando a traição da mulher consumar-se, para, num gesto frio e vingantivo, por fim a um amor que era legalmente impossível. Atirando para a cadeia o amante da mulher que «hora a hora, minuto a minuto, foi compreendendo que alguma força lá fora o mantinha afastado do mundo, no isolamento a que estava reduzido, e que essa força poderia ser a mesma que tinha libertado Cecília ao fim de poucas horas» (pág.82), o Engenhiro, acabaria não só por se identificar com o lavagante, mas também por inverter o seu paradigma, e porque numa «questão táctica [...] para ganhar uma presa é necessário às vezes soltar a outra» (pág. 83), o Safio, neste caso Daniel, será libertado pela mão invisivel do mesmo Engenheiro, sob uma implícita e tácita condição de Cecília, a outra presa, se manter fiel. Concluirá Daniel: «Todos os bichos sabem isso, e o lavagante também. Se sabe!» (pág. 83).
Politicamente o livro está encharcado. Mas que esperávamos? É Cardoso Pires!
O amante traído, esse famoso Sapo, um «fascista daqueles», surge como um engenheiro e acaba como um PIDE que continuamente é chamado de mau homem (p.e. safado pág.45). Há também as referências à censura, como o discurso inicial do jornalista bêbado de 39 anos («Viciámo-nos. Agora temos a Censura a escrever por nós. E amanhã? Quem sabe escrever amanhã, quando a Censura acabar?[...] A minha mão medrosa está viciada, amigos, escreve com medo...» cfr. pág.13), esse msmo discurso que levará o narrador a interrogar-se se poderia «reduzir um homem a um grito?,[...] ouvindo os lamentos do jornalista nosso companheiro» (pág.21). Esse mesmo Jornalista que insultará continuamente (Cabra, grandecissima cabra...18) Cecília, a femme fatale da história.
Mas, como desde já se vê, literáriamente Cardoso Pires é um maestro. Atente-se as descrições citadas. E leiam-se as passagens: «Diante de nós passam os autocarros vazios, de regresso a Lisboa, e veraneantes a caminho das esplanadas e do cinema da vila. E sobre esta feira sem música, esta procissão de vozes no escuro, um nome se levanta pela primeira vez entres dois amigos em confidências: Cecília» (pág.26); «Doutra maneira seria o strip-tease que conduz ao amor confessional e o amor confessional é a coisa mais complicada que Deus ao mundo deitou» (pág.50); e «Recapitulando, no dicionário de Daniel, Mulher Que Se Olha Ao Espelho é toda aquela que está permanentemente diante de si mesma; o pavor do ridículo caracteristico desta espécie origina, por via de regra, uma incapacidade de se entregar cujas consequências são por vezes dolorosas. A Mulher Que Se Olha Ao Espelho preza-se demasiado (ama-se, é o termo) para conseguir deixar de se estudar nas circunstâncias mais adversas e procura compensar as suas quebras de autoridade com uma critica impiedosa das situações absurdas» (págs.51-52). Ou mesmo a brilhante «E durante cinquenta e dois dias repetiu dolorosamente esse nome: Sapo, o Sapo. Como um relógio a marcar o tempo, como o sangue batendo nas veias» (pág.83). E poderia citar muitas mais (veja-se a Chegada da Primavera nas páginas 63-64).
Não diria que o livro é uma história de amor; antes, conta uma história de amor. Mas o que paira em toda a obra é a imagem dessa Cecília. É ela que está presente em todos os capítulos. É ela o motivo de toda a acção. É ela que começa como uma sombra e acaba como uma imagem concreta. Dúvidas? Leia-se o que o narrador afirma no fim do livro: «AGORA, SIM, vejo Cecília, fria e soberana»(pág.85).
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